terça-feira, 28 de dezembro de 2010

LIDERANÇA E AMEAÇA DO VAZIO ÉTICO

Chequei aos Estados Unidos em 1999 para pastorear uma igreja de imigrantes brasileiros em New Jersey. Estava muito feliz com a pequena igreja, de gente muito simpática, acolhedora e generosa. Aliás, eu nunca vi, nem liderei, uma igreja tão generosa quanto a Primeira Igreja Batista de Língua Portuguesa de New Jersey. Mas, logo percebi que a cultura ética que marcava a vida do imigrante brasileiro, no contexto estadunidense, estava presente, também, na igreja.

Logo na primeira reunião de oração que liderei, escutei uma senhora que disse: "Meus irmãos, eu quero agradecer a Deus, porque, agora, sei que Ele me trouxe para este país, pois, entrei aqui com um passaporte  "montado" (falso), mas hoje, estou com o meu "green card" (visto de residência permanente) nas mãos." E boa parte dos presentes respondeu: "Amém! Glória a Deus!"  Uma outra, na mesma reunião, pediu oração pelo seu filho: "...Que vai entrar amanhã pelo aeroporto de Newark, com passaporte falso; para que Deus ponha uma venda nos olhos do agente de imigração e ele passe sem problema."

"Meus Deus do Céu! Onde foi que vim parar?" Estava incrédulo quanto ao que estava ouvindo. Voltei para casa naquela noite com o coração sufocado. Meu sentimento era um misto de frustração e compaixão. Estava frustrado por notar que inevitavelmente eu entraria num dilema ético de proporções gigantêscas. Afinal de contas, como eu poderia liderar pessoas que jamais iriam caber naquela caixa de príncípios éticos que eu adquirira durante a minha vida inteira, na igreja, no seminário e no próprio pastorado? Mas, ao mesmo tempo, brotava de minha alma uma grande compaixão por aquela gente, pois, eu via bem claro que, longe de terem alegria nos desvios, estavam carregados de culpa e ansiedade.


Três modelos de ética

Max Stackhouse, professor de ética no seminário de Princeton, e organizador do livro "On moral Business", define a relação de religião e teología com a ética, em que religião e teologia definem em que devemos crer. A ética, por sua vez, define o que devemos fazer. Nesse sentido as palavras: integridade, justiça, justo, honestidade, entre outras, vão modelando conceitos de vida e ação moral, tanto na dimensão individual, quanto no contexto de grupo.

Assim, Stackhouse aponta três tendências de abordagem ética
*: a linha deontológica (do grego deon = dever), a linha teleológica (do grego telos = propósito) e a linha ethológica (do grego ethos = valores).


1. A ética deontológica. Os pensadores deontológicos partem da pergunta: "Qual é a lei?" Assim, buscam conhecer as normas e regras, com base na ideia de que " para toda a humanidade , algumas coisas são moralmente obrigatórias, não importando as circunstâncias ou consequências. Por exemplo, é certo falar a verdade, honrar pai e mãe, respeitar a autoridade, respeitar os direitos dos outros, etc, em qualquer momento, em qualquer tempo, em qualquer lugar. 


2. A ética teleológica. Os eticistas teleológicos partem da pergunta: Qual é o propósito? Não tratam de conhecer aquilo que é a norma a seguir, sempre, sem desvio, como um dever absoluto. Não! A teleologia procura conhecer o alvo, ou propósito. Assim, afirma Stackhouse, "a deontologia busca aquilo que é contante e confiável, enquanto a  teleologia busca conhecer o novo e dinâmico." No caso, não é uma questão de qual seja o meu alvo pessoal, ou mesmo corporativo que, por si somente, deve orientar minhas decisões morais, mas uma resposta adequada à questão: O que vale a pena realmente nessa vida? Pelo que vale a pena viver, sacrificar-se, trabalhar e até mesmo morrer?   

3. A ética ethológica. Os pensadores ethológicos partem da pergunta: "Qual é a maneira apropriada de fazer as coisas, nesse contexto particular?" Toda e qualquer relação tende a desintegrar-se, caso não se estabeleça um "Ethos" capaz de manter as interações saudáveis, seja no casamento, numa amizade ou num contexto de trabalho em equipe; no lar, escritório, fábrica, etc. Assim, destaca Stackhouse, "papeis devem ser definidos, hábitos devem ser praticados, histórias devem ser contadas, amizades devem ser formadas, promessas devem ser cumpridas, senso de qualidade e excelência devem ser cultivados." É ésse espírito de interação cooperativa, em que respeito, consideração, valorização e lealdade, entre outras qualidades, formam um "ethos" capaz de manter o funcionamento saudável e producente de um ambiente relacional.


Um líder, além de ser ele mesmo um exemplo de integridade e corretude, deve esforçar para definir, com sua equipe, um ethos para sua organização. Sobretudo, o líder deve agir com base em princípios e valores, de maneira proativa, não reativa, significando que as emoções, embora importantes, não comandarão as suas decisões. Assim, ao disseminar os valores e princípios pelo tecido relacional da organização que lidera, o líder promove um olho organizacional capaz de moldar as ações individuais ao "ethos" grupal, diminuindo, dessa forma, as zonas de atrito e os pontos cegos, em que cada um age conforme sua inclinação pessoal.

Hoje estou certo de que errei ao deixar de priorizar, na minha última experiência como líder, uma reflexão séria e uma definição clara do ethos**
 da comunidade. Deixamos de definir, por exemplo, que atribuições deveriam ter os líderes em cada função e os limites de cada um na função específica que exercia. Não era claro, por exemplo, que critérios deve preencher quem desejasse se tornar membro da comunidade. Não definimos o que seria considerado desvio ético na comunidade, em relação às relações interpessoais, imigração e comportamento público. Nada ensinamos sobre o funcionamento e a estrutura de uma comunidade batista. Embora eu tivesse em mente cada uma dessas coisas, faltou-me a iniciativa de liderar o grupo a formar uma aliança em torno dos temas. Quando comecei a tentar preencher esse vácuo, já não dava mais tempo. Enfim, aprendi a lição.


Para concluir, deixo uma sugestão, ainda que na contramão: se você deseja colocar sua liderança em risco, mantenha o vazio ético na organização que lidera. Assim, deixe sua equipe sem definições claras de papeis, limites territoriais e deveres, de tal forma, que eles não tenham de prestar contas uns aos outros e, sobretudo, a você, enquanto líder. Nunca se esqueça de que o vácuo sempre encontrará quem o ocupe. Quanto mais "laissez-faire"  for a sua liderança, sobretudo, nesse aspecto, mais frágil ela será.


Mas, se quiser cimentar sua posição como líder, defina, entre outras coisas, princípios e valores cooperativos para a equipe gestora, através da educação continuada, treinamento e formalização de uma aliança. Depois, em cascata, batize a comunidade inteira nas águas desse Ethos. Sua organização será vista como confiável, séria e responsável. Não só atrairá mais participantes e, ou clientes, mas atrairá e reterá melhores voluntários e, ou associados. Naturalmente, fazer isto dá trabalho, exige algum investimento de tempo, dinheiro e paciência, mas, produz resultado duradouro: tão duradouro que permanecerá, mesmo quando você tiver de sair.

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* Raimundo Barreto, define ética como uma “reflexão teórica que analisa e critica ou legitima os fundamentos e princípios que guiam um determinado sistema moral." (Facing the Poor: Three Evangélico Responses to the Plight of the. Oppressed in Brazil. Tese de doutorado. Princeton Theological Seminary. p. 15) 


** Max Stackhouse, citado por Raimundo Barreto Jr., define ethos como sendo “the subtle web of values, meanings, purposes, expectations, obligations, and legitimations that constitutes the operating norms of a culture in relationship to a social entity.” - A sutil rede de valores, significados, propósitos, expectativas, obrigações e legitimações que constituem as normas operativas de  uma cultura em relação uma entidade social. (Idem.  p. 6)

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